Fruto mais colhido depois do açaí, castanha some com a seca na Amazônia e afeta extrativistas

O Globo, Brasil, p. 17 - 23/03/2025
Fruto mais colhido depois do açaí, castanha some com a seca na Amazônia e afeta extrativistas
Diante da seca histórica na região em 2024, estima-se que a safra atual seja a pior já registrada, afetando 332 famílias que dependem da castanha para alimentação e geração de renda

Lucas Altino

23/02/2025

De dezembro a maio, os ouriços de castanha, como são chamados os frutos das castanheiras da Amazônia, caem das árvores e atraem extrativistas que coletam, separam e organizam o que é o segundo produto de extração mais vendido do bioma do Norte do país (atrás apenas do açaí). Neste ano, porém, o ciclo não deve se repetir. A castanha não vai dar "nem para o leite", como dizem os ribeirinhos, acostumados a usar o líquido do fruto para cozinhar peixes e caças. Diante da seca histórica na região em 2024, estima-se que a safra atual seja a pior já registrada.

O resultado deve superar negativamente o do período de 2016 a 2017, quando a produção recuou 70% em relação ao biênio anterior. Oito anos depois, o problema se repete e se agrava, o que evidencia o impacto das mudanças climáticas, alertam especialistas. Agora, os eventos extremos acontecem de forma cada vez mais intensa e frequente.

Na Terra do Meio, área que abrange três reservas extrativistas - Rio Iriri, Riozinho do Anfrísio e Rio Xingu - entre Altamira e São Félix do Xingu (PA), há 332 famílias que dependem da castanha para alimentação e geração de renda. Neste ano, já esperavam uma safra fraca. Mas o resultado foi pior do que o previsto.

- Foi uma safra sem nenhuma entrega, como eu nunca tinha visto. Não existe castanha na Terra do Meio nem para alimentação - lamenta Francisco de Assis Porto, presidente da Rede Terra do Meio, que reúne os extrativistas da região e no ano passado movimentou R$ 2 milhões no comércio de produtos da floresta, dos quais R$ 500 mil só com a castanha. - Me articulei com parceiros para termos mantimentos e comida e não sofrermos um impacto ainda maior. E até para a comunidade não ir embora.

Segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), considerando a média de estiagem em todo o 2024 na Amazônia, 70% dos municípios da região (414 de 591) tiveram um ano de seca. Vários rios foram rebaixados aos menores níveis já vistos, como os principais de Altamira, o Xingu e o Iriri. A estiagem comprometeu a fisiologia das castanheiras e a reprodução das abelhas, que são as responsáveis por polinizar as flores.

Sem vendas
A Rede Terra do Meio existe há pouco mais de dez anos e, pela primeira vez, não há expectativas de venda relevante de castanha. Até o momento, menos de cem caixas de 20 litros de volume foram coletadas, o que corresponde a 2 metros cúbicos. Coordenadora do Instituto Socioambiental (ISA) na Terra do Meio, Fabíola Moreira lembra que a renda gerada no ciclo da castanha é essencial para o sustento das famílias durante o ano inteiro.

- Sem a venda da castanha, as famílias têm mais dificuldades para comprar itens da cidade e cuidar da saúde. As comunidades vivem na pele os reflexos da crise climática. Não é mais algo do futuro, mas o presente deles. É necessário que políticas públicas sejam pensadas a fim de minimizar os impactos e dar condições de adaptação às mudanças - cobra Moreira, que critica a demora na decretação de situação de calamidade pública para a região, que facilita o acesso a doações. - Às vezes, quando sai o decreto, o rio já secou e não permite a navegação para entrega das cestas. A Resex Riozinho do Anfrísio chegou a ficar isolada em 2024, com poucos pontos possíveis de navegação.

Em algumas comunidades da Terra do Meio, os moradores estão comprando ou trocando alimentos com os vizinhos, conta Moreira. Além disso, os pontos de abastecimento receberam produtos doados como farinha, borracha e sementes, para facilitar as trocas.

Ciclo de três anos
Os ciclos da castanha se repetem a cada três anos, explica Luiz Brasi Filho, gerente da rede Origens Brasil do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). A safra é muito boa no primeiro ano e declina até o terceiro, quando o ciclo se reinicia. O período de 2024 a 2025 já seria o de menor safra neste intervalo, mas não se esperava algo tão ruim.

- Estamos colhendo os frutos da seca histórica. Não é só na Terra do Meio, está acontecendo em todos os estados - frisa Brasi, que aproxima empresas de comunidades tradicionais em todos os estados amazônicos. - Em Rondônia, a Embrapa divulgou uma nota técnica estimando a redução de 85% no volume de castanha na Terra Indígena Rio Branco.

Brasi trabalha com castanhas há dez anos e só havia visto uma situação similar no período de 2016 e 2017, quando a Embrapa apontou uma redução de 70% na produção. Ainda não há dados consolidados sobre a safra atual, e as estatísticas de extração sofrem com falta de padronização. Mas o cálculo é que esse recorde negativo deve ser superado.

- Os eventos drásticos estão acontecendo com frequência maior, e são cada vez mais intensos - alerta Brasi. - Isso afeta o mercado. Os preços da castanha já estão muito altos, assim como acontece com o café e o ovo. Muitas vezes o mercado substitui a castanha da Amazônia pela de caju ou uma internacional. Mas aqui a diferença é que as comunidades são extremamente impactadas.

Em uma nota técnica publicada na semana passada, a Embrapa Rondônia reconheceu que as altas temperaturas resultaram na falta do produto em todas as regiões da Amazônia. Mas a empresa vinculada ao Ministério da Agricultura destacou que há uma forte possibilidade de recuperação da produção na safra de 2025 e 2026. Com essa perspectiva, a Embrapa recomenda que sejam mantidas as linhas de produção, a gestão dos estoques, a flexibilização de contratos e negociações, o apoio a financiamentos e a informação transparente ao mercado para enfrentar a quebra da safra.

Questionado sobre a crise da castanha, o Ministério do Meio Ambiente informou que atua para mitigar os impactos da seca da Amazônia e citou medidas emergenciais. Entre elas, o reforço do Programa Bolsa Verde, que atende mais de 53 mil famílias, e a elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais.

O Globo, 23/03/2025, Brasil, p. 17

https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia/2025/03/23/fruto-mais-colhido-depois-do-acai-seca-faz-castanha-sumir-da-amazonia-e-afeta-extrativistas.ghtml
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