Dois surucuás e uma história sem fim

Marcos Sá Corrêa - http://marcossacorrea.com.br - 04/08/2010
Os bichos às vezes dão a impressão de saber que, aqui no Iguaçu, vivem num ambiente de regalias administrativas. Senão, como explicar que, com tanta mata a seu redor, aquele casal de surucuás veio se empoleirar logo nos galhos que ficam bem diante do janelão envidraçado da casa onde mora o diretor do parque nacional.

O surucuá é um pássaro ao mesmo tempo vistoso e discreto. Tem parentesco próximo com o quetzal da América Central, cuja plumagem embasbacou os colonizadores espanhóis com a exuberância iridescente do cocar de Montezuma. Hoje, o quetzal, em si, é ave rara. Mas virou nome de moeda na Guatemala.

O quetzal é um espanto. A palavra, por sinal, quer dizer em língua nativa qualquer coisa como "cauda grande e brilhante". E lhe valeu, em grego, o cognome científico de Pharomachrus, que também se refere a seu "manto longo". Mas, sem a fantasia de luxo carnavalesco do primo rico, o surucuá pertence a uma família tão colorida, a Trogon, que os nomes populares de suas espécies acabam geralmente em apostos como "do-peito-azul" ou "da-barriga-dourada".

Ele chama tanta atenção que, dias atrás, a foto de um surucuá neste blog mereceu um comentário de leitor diferente - no caso, uma leitora que escreviaespecificamente para saber como se chama o animal mostrado numa ilustração. Sim, era ele. Ou seja, tecnicamente o mesmo pássaro que visitava o jardim da leitoria. Mas suas cores variam tanto, até por efeito da luz em suas penas prismáticas, ou mesmo entre macho e fêmea ou de uma região a outra, que nem sempre é fácil reconhecê-lo nos guias de aves - a menos que ele conste do retrato de família.

Sendo tão resplandescente, como o surucuá consegue ser discreto? Pelo comportamento. Ele se mexe nos galhos com a calma e a ponderação de quem sabe que tem estampa demais para não dar na vista, o que costuma ser um tormento na vida das criaturas mansas. O surucuá - que se alimenta de insetos e frutas, sempre pequenos - nasce desarmado até no bico, curto demais para seu porte e ainda por cima quase enterrado num tufo de penugem decorativa.

Seu canto, que alguns ornitólogos classificam como "melancólico", soa como a repetição de uma nota só em flauta de bambu, com um compasso final em surdina. Dá para ouvi-lo com freqüencia ultimamente nas beiradas de trilhas do Iguaçu, porque o surucuá está em fase de acasalamento.

No mato, ouvi-lo não é garantia de vê-lo. A não ser que um raio de sol revele de repente o brilho inconfundível de suas penas, sua figura imóvel se perde na folhagem - inclusive na folhagem rala da temporada, na floresta estacional semidecídua do parque. Mas, cantando no jardim do diretor, é outra história.

O casal passou horas, na tarde do domingo passado, chamando a máquina fotográfica de um lado para o outro. É típico do surucuá trocar de poleiro em vôos curtos e silenciosos. Na floresta, bastam-lhe poucos metros para sumir de vista, às vezes definitivamente. Mas num terreno onde as árvores nativas se espalham no chão limpo, como se estivessem num mostruário vivo da botânica local, a conversa é outra.

Aonde ia um surucuá, a teleobjetiva ia atrás. Acompanhada de flash, para revelar o indescritível colorido das penas. Tratando-se da perseguição a um casal, o equipamento fotográfico deu voltas no jardim até entender que os vôos do macho e da fêmea, sempre próximos mas separados, tinham um padrão intrigante, como se cumprissem um roteiro ao redor do jardim.

Até que o círculo se fechou num oco de árvore, onde se encaixava, como uma torre de barro, o ninho de cupins. É em lugares assim que os surucuás costumam se instalar como inquilinos, na época da procriação, sem com isso expulsar os proprietários. Havia um buraco redondo, recém cavado no cupim. E nele estava o eixo de todas aquelas voltas aparentemente a esmo através do jardim.

O macho não teve dúvidas. Tapou imediatamente a entrada do ninho com o corpo, exibindo nesse momento todo o fulgor metálico de seu dorso. Aparentemente, para proteger a casa. Era, naquele momento, presa fácil. Expor-se a esse ponto só podia ser prova de coragem. Coragem que, pelo visto, a fêmea só faltou aplaudir como espectadora, admirando a cena de um ramo baixo, quase na primeira fila, diante do ninho, atenta ao desenrolar dos acontecimentos, com o olhar acentuado pelos cílios longos.

Foi grande a tentação de seguir a história da dupla até o fim, agora que ela tinha acrescentado, à coreagrafia estonteante dos vôos circulares, um enredo óbvio até para o mais ignorante dos observadores ou fotógrafos bissextos de aves. Mas era mais claro ainda o sinal de que estava na hora de deixá-los a sós, aos cuidados da janela do diretor. Poranto, a história dos surucuás acaba aqui.


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