Projeto-piloto com brigadas voluntárias e comunitárias pode ser modelo para iniciativas de manejo integrado do fogo
A experiência mostrou a relevância do voluntariado, envolvimento de comunidades locais e da cooperação interinstitucional
Angela Pellin
Pesquisadora do Ipê - Instituto de Pesquisas Ecológicas
Fernando Rodovalho
Geógrafo, é especialista em manejo integrado do fogo do IPÊ
13/09/2024
Em 2024, o Brasil tem registrado um número recorde de queimadas em todo o país. De janeiro a agosto, foram mais de 100 mil focos de incêndios florestais, um aumento de 78% em comparação com o mesmo período do ano anterior.
O cenário é alarmante, mas um projeto-piloto desenvolvido com brigadas voluntárias e comunitárias na região do Baixo Tapajós, no estado do Pará, pode servir como modelo para futuras iniciativas em outras áreas críticas da Amazônia e em outros biomas. A experiência mostrou a relevância do voluntariado, envolvimento de comunidades locais e da cooperação interinstitucional na proteção dos recursos naturais e na promoção da resiliência territorial.
Em dezembro de 2023, a região sul da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns foi atingida por incêndios florestais de grandes proporções. A operação durou aproximadamente 44 dias e custou caro, tanto em recursos públicos quanto privados, além de resultar em uma grande área atingida pelo fogo.
Em julho de 2024, novos focos foram detectados em locais próximos aos campos onde se iniciaram os incêndios no ano anterior. A avaliação do local mostrou um fogo sem controle que exigia resposta: ou seja, um incêndio florestal. Dessa vez, no entanto, o incêndio foi dado como extinto em poucos dias, devido ao trabalho integrado das brigadas voluntárias e comunitárias e do ICMBio.
Muitas variáveis podem contribuir para o alastramento ou extinção do fogo, mas nesse caso uma resposta rápida foi a principal responsável por evitar que o incêndio ganhasse maiores proporções. E, entre o incêndio florestal do ano passado e o deste, há uma mudança significativa: a participação das brigadas comunitárias locais no Teste da Estratégia Federal do Voluntariado no Manejo Integrado do Fogo.
MANEJO INTEGRADO DO FOGO NA REGIÃO DO BAIXO TAPAJÓS
O Manejo Integrado do Fogo (MIF) é um conjunto de ações para evitar, preservar, controlar e até mesmo utilizar o fogo em determinada paisagem e contexto sociocultural. O manejo deve ser feito entendendo-se que o combate a incêndios deve ser o último elo da corrente, quando todo o resto deu errado. Por isso, é fundamental trabalhar a educação ambiental e a prevenção, capazes de evitar perdas ambientais, financeiras e de vidas.
Desde 2022, nós, do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, temos trabalhado na construção da Estratégia Federal do Voluntariado no Manejo Integrado do Fogo. A iniciativa é coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima em parceria com o Ibama e ICMBio e financiada pela GIZ.
A Estratégia Federal tem o objetivo de ampliar, fortalecer e orientar a participação da sociedade no voluntariado para o manejo integrado do fogo, estimulando a troca de saberes e a colaboração entre os diferentes setores, visando ampliar a efetividade das ações e maior segurança dos envolvidos.
As brigadas voluntárias e comunitárias são fundamentais e protagonistas no manejo integrado do fogo, porque são formadas por pessoas que estão nos territórios atingidos, conhecem melhor a região e podem atuar para prevenir ou combater um incêndio florestal antes que atinja proporções maiores.
Com a Estratégia Federal definida em discussões entre o poder público e representantes de brigadas e da sociedade civil, decidimos que era preciso testá-la num território. Optamos pela região do Baixo Tapajós, onde fica a Resex Tapajós-Arapiuns, uma reserva imensa, com cerca de 23 mil moradores, além da Floresta Nacional do Tapajós e das APAs de Aramanaí e de Alter do Chão. Historicamente, a região enfrenta desafios significativos relacionados ao uso do fogo.
Ele é utilizado na agricultura dos povos e comunidades tradicionais para limpeza de terrenos, mas as condições climáticas adversas têm gerado maior susceptibilidade para ocorrência de incêndios florestais, impactando negativamente a biodiversidade e a saúde dessas comunidades. Além disso, fogo tem sido utilizado como ferramenta de desmatamento, correlacionado com o avanço da fronteira agrícola, especulação imobiliária e garimpos ilegais.
Trata-se de um território muito interessante, com uma articulação comunitária forte, uma gestão presente do ICMBio e muitos projetos já desenvolvidos. É desta região a Brigada de Alter do Chão, uma brigada voluntária, ativista, muito bem articulada e que faz parte da Rede Nacional de Brigadas Voluntárias (RNBV).
CONSTRUÇÃO COLETIVA
Com o apoio técnico e logístico da Brigada de Alter no desenvolvimento de todo o processo, realizamos um diagnóstico do voluntariado engajado no MIF na região. Ao todo, 13 organizações comunitárias e voluntárias responderam à pesquisa que integrou o estudo. Isso feito, demos início às oficinas. A primeira foi exatamente para que comunitários e poder público dialogassem e complementassem informações sobre o cenário atual do uso do fogo e voluntariado no MIF na região. A seguinte tratou de um planejamento para o território.
O projeto incluiu ainda a capacitação dos participantes em conceitos relacionados ao manejo integrado do fogo e algumas ferramentas de sensoriamento remoto, monitoramento territorial e navegação com instrumentos gratuitos pelo celular. Discutimos também o fortalecimento institucional dos grupos visando apoiar a futura captação de recursos.
Considerando a necessidade de ampliar a integração entre poder público e brigadas voluntárias e comunitárias foi realizada uma capacitação em Sistema de Comando de Incidentes (SCI), uma ferramenta de gestão de incidentes, que permite que as pessoas falem uma linguagem comum, usem procedimentos padronizados, com estruturas preestabelecidas para as diversas instituições e gerenciamento integrado dos recursos e objetivos. Em resumo, é uma linguagem operacional comum -fácil, simples e acessível.
O SCI foi criado nos anos de 1970 nos Estados Unidos, em razão de um grande incêndio na Califórnia, e regulamentado depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando passou a ser usado por todas as agências federais do país. Desde 2010, o sistema vem sendo implementado no Brasil por meio de uma cooperação do Ibama e ICMBio com o Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS).
Isso, no entanto, foi feito com muito cuidado, dentro de uma proposta de construção coletiva, considerando as especificidades da região, respeitando os conhecimentos locais e trazendo as pessoas das comunidades para integrar as cadeias de comando estabelecidas conjuntamente.
As pessoas têm que construir juntas as soluções para que elas sejam efetivas. Portanto, o que fizemos foi proporcionar os espaços de debate entre as pessoas, dos representantes do poder público aos líderes comunitários. Um diálogo que nem sempre é fácil, mas é necessário. Com isso, ao longo do processo, fomos avançando para construir acordos.
Ao final, chegamos em uma chave de acionamento conjunto, que é uma chave de tomada de decisão compartilhada no território. Agora, tanto o poder público quanto as comunidades sabem o que têm que fazer em cada situação. Isso parece simples, mas não é. É um grande combinado, em que todos sabem o que precisa ser feito, quem acionar, quem responder e quais canais de comunicação utilizar. E sabem também seus limites.
O projeto incluiu ainda a capacitação dos participantes em conceitos relacionados ao manejo integrado do fogo e algumas ferramentas de sensoriamento remoto, monitoramento territorial e navegação com instrumentos gratuitos pelo celular. Discutimos também o fortalecimento institucional dos grupos visando apoiar a futura captação de recursos.
Considerando a necessidade de ampliar a integração entre poder público e brigadas voluntárias e comunitárias foi realizada uma capacitação em Sistema de Comando de Incidentes (SCI), uma ferramenta de gestão de incidentes, que permite que as pessoas falem uma linguagem comum, usem procedimentos padronizados, com estruturas preestabelecidas para as diversas instituições e gerenciamento integrado dos recursos e objetivos. Em resumo, é uma linguagem operacional comum -fácil, simples e acessível.
O SCI foi criado nos anos de 1970 nos Estados Unidos, em razão de um grande incêndio na Califórnia, e regulamentado depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando passou a ser usado por todas as agências federais do país. Desde 2010, o sistema vem sendo implementado no Brasil por meio de uma cooperação do Ibama e ICMBio com o Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS).
Isso, no entanto, foi feito com muito cuidado, dentro de uma proposta de construção coletiva, considerando as especificidades da região, respeitando os conhecimentos locais e trazendo as pessoas das comunidades para integrar as cadeias de comando estabelecidas conjuntamente.
As pessoas têm que construir juntas as soluções para que elas sejam efetivas. Portanto, o que fizemos foi proporcionar os espaços de debate entre as pessoas, dos representantes do poder público aos líderes comunitários. Um diálogo que nem sempre é fácil, mas é necessário. Com isso, ao longo do processo, fomos avançando para construir acordos.
Ao final, chegamos em uma chave de acionamento conjunto, que é uma chave de tomada de decisão compartilhada no território. Agora, tanto o poder público quanto as comunidades sabem o que têm que fazer em cada situação. Isso parece simples, mas não é. É um grande combinado, em que todos sabem o que precisa ser feito, quem acionar, quem responder e quais canais de comunicação utilizar. E sabem também seus limites.
AS BRIGADAS VOLUNTÁRIAS E COMUNITÁRIAS
Existe uma diferença entre uma brigada voluntária e uma brigada comunitária. A brigada voluntária se voluntaria para atuar num território, podem ser áreas próximas de onde essas pessoas vivem ou áreas utilizadas por elas, como por exemplo com a finalidade de turismo, e os voluntários querem contribuir para a sua conservação.
Já a brigada comunitária possui vínculo com o território, podendo ser o local onde vivem e desenvolvem atividades econômicas ou de subsistência, não é, necessariamente, voluntária. Vale pensar numa analogia simples: eu não gosto de varrer a minha casa, mas, se eu não fizer isso, ninguém vai varrer para mim. Então, eu não sou voluntário para isso, mas eu faço porque é preciso. Assim é com a brigada comunitária.
No processo, buscamos entender o que motivou a criação das brigadas comunitárias. E uma das principais respostas foi similar à que recebemos no diagnóstico completo que fizemos no ano passado quando identificamos cerca de 200 brigadas voluntárias e comunitárias no Brasil. A maioria delas foi motivada pela ocorrência de um grande incêndio florestal, que levou os moradores a se organizarem para responder ao problema.
O estabelecimento desses coletivos, a partir de uma construção colaborativa, é o que vai fazer a diferença para uma resposta mais rápida quando preciso. Mas um ponto importante é que para isso, esses grupos precisam estar capacitados e com os devidos equipamentos de segurança, pois caso contrário, eles estarão colocando suas vidas em risco. Essa sempre foi uma grande preocupação da Estratégia Federal do Voluntariado no Manejo Integrado do Fogo e do teste nesse território.
Além disso, é importante destacar que o papel dessas brigadas voluntárias e comunitárias vai muito além do combate aos incêndios florestais, a maioria desses coletivos atua com ações de educação ambiental e prevenção, e tem capacidade de articulação e diálogo nos territórios onde vivem ou atuam.
No caso das comunidades envolvidas na experiência que apoiamos no Baixo Tapajós, hoje, se um incidente começa em uma área, elas sabem o que fazer: se ela não é capacitada para combater o fogo, vai designar alguém para ir checar o foco e fotografar, já com as coordenadas geográficas. Depois, enviará nos grupos de WhatsApp (que é a forma mais usada para a comunicação entre os comunitários), acrescentando algumas informações importantes, como a existência de pontos de água próximos e os acessos ao local.
Já há um fluxo a ser seguido: a comunidade se comunica no grupo de WhatsApp específico para essa finalidade e que conta com o representante do ICMBio, responsável pela gestão do fogo na área. No mesmo momento é definida qual a brigada capacitada e equipada mais próxima que poderá se dirigir para o local e iniciar o combate, e quais serão os recursos necessários para a resposta. Tudo isso é realizado de forma articulada e sendo monitorado pelo poder público para garantir a eficácia e segurança de todos.
Quem não está habilitado a ir para a linha de frente não deve se colocar em risco, mas pode apoiar quem está: quem vai fazer comida e levar água aos combatentes? Onde as equipes que vêm para realizar o combate vão dormir? Quais são os melhores acessos para chegar em áreas estratégicas para o combate? Na prática, estabelecer esses combinados e ter o apoio logístico e de conhecimento das comunidades locais faz toda a diferença.
Nas comunidades que contam com brigadas comunitárias capacitadas para o combate, já se estabelece quem será o líder naquele evento, orquestrando as ações, quem que vai ser o responsável por fazer o contato com o ICMBio e outros órgãos, quem que vai cuidar da logística etc. Com esses papéis bem definidos, os fluxos de ação estabelecidos e uma linguagem comum, as decisões ficam muito mais rápidas. Se, após a intervenção da brigada comunitária, o incêndio florestal não for controlado, a coordenação será assumida pelo ICMBio, podendo inclusive trazer reforços, mas continuará sendo apoiado pela brigada comunitária e pela comunidade.
Os resultados práticos do Teste da Estratégia Federal do Voluntariado no Manejo Integrado do Fogo parecem já estar aparecendo, como no caso do incêndio de julho desse ano, mas os resultados só poderão ser adequadamente mensurados após a temporada crítica de incêndios florestais. Para auxiliar nisso temos um acordo com a Brigada de Alter que fará a sistematização de informações sobre acionamentos, checagens e atendimento às ocorrências no território e nos auxiliarão a ter alguns indicadores importantes para medir o sucesso da iniciativa. Além disso, estamos falando de um território dinâmico e arranjos e acordos ainda estão sendo estabelecidos entre os atores locais. Esse é um momento propício para se pensar caminhos diversificados na resolução desses incêndios, que têm se tornado mais intensos e frequentes.
No final de julho, o governo federal aprovou a a Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo. Ela ainda não trata de arranjos como o estabelecido na Região do Baixo Tapajós, mas é simbólico que seja uma política de Manejo Integrado do Fogo, e não apenas de prevenção e combate a incêndios florestais. Não há como lidar com uma situação como a que vivemos hoje sem levar em consideração os conhecimentos tradicionais do uso do fogo e criar ações que abarquem desde a educação ambiental até a restauração de áreas atingidas pelo fogo. E, para isso, a presença e participação não só das brigadas voluntárias e comunitárias, mas de toda a sociedade civil, é fundamental.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/09/projeto-piloto-com-brigadas-voluntarias-e-comunitarias-pode-ser-modelo-para-iniciativas-de-manejo-integrado-do-fogo.shtml
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