Participação social
O desafio de conservar a biodiversidade, mesmo em áreas limitadas como as unidades de conservação, não pode ser feito sem a parceria da sociedade. Cada vez mais os conservacionistas, cientistas e gestores percebem que a estratégia de conservar a biodioversidade em áreas protegidas, ignorando o cenário político e social mais amplo é pouco eficaz. Enquanto o mal uso da terra e dos recursos fora das áreas continuar, o futuro das unidades de conservação e de sua biodiversidade estará ameaçado. Além disso, estabelecer áreas protegidas sem levar em conta os problemas e direitos das populações locais cria conflitos e ressentimentos que, em última instância, ameaçam a integridade da biodiversidade que se quer conservar.
Diante desse quadro, alguns novos modelos de criação, implementação e gestão de áreas protegidas, bem como categorias inovadoras, tem sido concebidos e colocados em prática. É uma aposta na conciliação entre gente e biodiversidade.
Um exemplo são os mosaicos de unidades de conservação que reúnem áreas com diversas finalidades e distintos graus de uso permitido, possibilitando a continuidade de atividades tradicionais das comunidades locais e a geração de novas alternativas de renda. Outro exemplo, são as reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, que por meio de um zoneamento buscam harmonizar as atividades produtivas das comunidades locais e a conservação da biodiversidade. Apesar desses novos modelos representarem um significativo avanço, ainda há muito a ser feito na busca da conciliação.
É interessante notar que essas categorias inovadoras têm sido tratadas pelos adeptos do modelo de conservação que exclui populações humanas, como unidades de conservação de segunda categoria, sob o argumento de que possuem outros objetivos além da proteção da biodiversidade. Esse argumento, no entanto, é questionável, por vários motivos: a) esses novos modelos possibilitam aumentar a superfície de cobertura das áreas protegidas, o que é fundamental para a manutenção da biodiversidade; b) em geral, essas categorias abrangem zonas destinadas exclusivamente à proteção da biodiversidade; e c) não será possível conservar a biodiversidade se não forem criados mecanismos de manutenção dos processos biológicos. Muitas dessas categorias e novos modelos podem funcionar como exemplos de formas alternativas de uso dos recursos naturais, mais racionais e sustentáveis, a serem seguidos, inclusive, fora de espaços especialmente protegidos.
Apesar da adoção de novos modelos e da existência de muitas experiências visando à conciliação entre presença humana e conservação da biodiversidade, persiste a questão de se é possível, efetivamente, conciliar, ou se essa seria uma estratégia na linha de ‘vão-se os anéis, ficam-se os dedos’. Em outras palavras, na impossibilidade de se ter todas as áreas sem populações humanas, o jeito é se conformar com isso e tentar salvar o que se puder. Essa questão possui várias facetas que valem a pena ser examinadas.
A primeira delas tem relação com a já mencionada escala dos processos biológicos, responsáveis pela manutenção da biodiversidade. A segunda, com a persistência das áreas protegidas a longo prazo. A terceira faceta digna de análise relaciona-se com a contraposição entre unidades vistas isoladamente e um efetivo sistema de áreas protegidas. E, por fim, uma quarta, conectada às outras três, que se refere aos padrões de uso dos recursos naturais fora das unidades e ao exemplo que as áreas protegidas podem vir a se tornar. A seguir, elas são analisadas separadamente.
Os processos que mantêm a biodiversidade nas áreas protegidas ocorrem numa escala que ultrapassa essas áreas. Assim, os modelos que conciliam áreas de proteção integral com áreas com outras funções podem regular o uso da terra e dos recursos naturais em porções maiores do território. Ao invés de unidades de conservação perdidas – e às vezes naufragando – em um mar de degradação, obtém-se uma vasta área protegida com maiores possibilidades de preservação dos processos biológicos. Evidentemente, e as experiências práticas mostram isso freqüentemente, o uso racional dos recursos naturais não é algo comum, sendo difícil a implementação efetiva desse tipo de área protegida. Ainda assim, há experiências promissoras. Vista sob essa faceta, parece possível conciliar conservação da biodiversidade e populações humanas e, mais do que isso, essa conciliação é desejável.
A persistência das áreas protegidas a longo prazo, fundamental se as formas predatórias de uso da terra e dos recursos naturais continuarem, depende fortemente das comunidades diretamente relacionadas a elas, que vivem em seu interior ou em suas circunvizinhanças. Defender as unidades de conservação das populações, além de caro, é insustentável. A conciliação aumenta as chances das áreas protegidas persistirem.
Se a questão da conciliação fosse colocada no âmbito de apenas uma única área, uma unidade de proteção de integral e uma população que faz uso dos seus recursos dessa área, a conciliação poderia ser bastante difícil. Se, no entanto, a questão for examinada a luz de um sistema de unidades de conservação, onde há diversas categorias de unidades, a possibilidade de um zoneamento democrático e participativo das unidades e espaços de negociação, a conciliação se torna mais fácil. Um dos argumentos mais freqüentemente usado contra a permanência de populações humanas em áreas onde se quer conservar a biodiversidade é o uso futuro que essas populações farão dos recursos naturais.
Alguns, por exemplo, consideram a questão uma “bomba de tempo”, argumentando que o uso que as populações humanas fazem dos recursos naturais das áreas protegidas tende a aumentar, pois não seria ‘justo’ restringir seu acesso à tecnologia e isso conduziria a um aumento considerável do impacto dessas populações. Não há dúvida de que se trata de um robusto argumento, ainda mais combinado com o reconhecimento dos problemas envolvidos na realocação de populações humanas. Entretanto, o real problema é que a solução oferecida, por muitos que assim argumentam, é a diminuição das taxas de natalidade das populações tradicionais, para reduzir o número de pessoas nas unidades de conservação e minimizar seu impacto futuro1.
Diante disso, não é possível evitar, dentre muitas outras, as seguintes indagações: Por que não defender a diminuição da pressão global sobre os recursos naturais? Por que não pregar uma diminuição do consumo mundial? Por que não pregar uma redução das taxas de natalidade de toda a população humana? Por que não exigir que os benefícios oriundos da biodiversidade sejam igualitariamente distribuídos, de forma a evitar que as populações tradicionais sejam tão carentes e marginalizadas? Em suma, por que essas populações devem ser, mais uma vez, as sacrificadas a sofrerem restrições? Se colocarmos a questão da possibilidade de conciliação dentro de uma outra escala – considerando os múltiplos usos das diferentes categorias de áreas protegidas – talvez seja possível respostas e perguntas mais ‘justas’.
Persistem, evidentemente, as dificuldades relacionadas com o uso racional dos recursos naturais, mas o crescimento de instrumentos de educação e de participação fornece novas perspectivas e esperanças.
A última faceta a ser examinada aqui é a idéia de que a conciliação entre conservação e uso da biodiversidade pode fornecer um novo paradigma de desenvolvimento para a totalidade de ambientes, e não apenas para aqueles abarcados por áreas protegidas. Enquanto o uso da terra e dos recursos naturais continuar a ser tão intenso e insustentável quanto atualmente, as áreas protegidas estarão ameaçadas. Na conciliação da manutenção da biodiversidade com o seu uso pelas populações humanas, combinada com um zoneamento consistente, reside a esperança de uma transformação maior da forma humana de se relacionar com o ambiente.
Em suma, não se pode perder de vista as relações que as áreas protegidas têm com as paisagens e ecossistemas onde estão inseridas e com o uso que se faz deles. Acreditar que as áreas protegidas manterão a diversidade biológica, se desconectadas de seu ambiente externo, é ignorar a escala dos processos biológicos.
Acreditar que essas áreas poderão conservar os processos biológicos desconectadas das comunidades locais é ignorar a dimensão humana das políticas de conservação de biodiversidade, equiparando-as às políticas tecnocratas de desenvolvimento, voltadas apenas para as elites que são, na maioria dos casos, as maiores predadoras dos meio ambiente.
Conservação como possibilidade de transformação social
Com a emergência desses novos modelos, a conservação da biodiversidade adquiriu uma nova dimensão: a de agente de transformação social. Os esforços de conservação passaram a ter que identificar e promover os processos sociais que permitem às comunidades locais conservar a biodiversidade como parte de seus modos de vida. As expressões ligadas à participação popular passaram a fazer parte da linguagem de muitas agências de desenvolvimento, desde organizações não governamentais até instituições governamentais e bancos de desenvolvimento, porém há várias possíveis interpretações para esses termos.
Durante o período do colonialismo, o manejo era coercitivo e as populações encaradas como impedimento para a conservação. Até os anos 1970, a participação era vista como uma forma de se conseguir a submissão voluntária das populações ao modelo de áreas protegidas. Durante a década de 1980, participação passou a ser equivalente a estimular o interesse pela proteção dos recursos naturais. E, nos anos 1990, a participação passou a ser compreendida como o envolvimento das populações locais no manejo das áreas protegidas. Como se vê, houve um reconhecimento crescente do papel chave das comunidades locais na conservação da biodiversidade.
Assim, conservacionistas e gestores de áreas protegidas – ao ter que lidar com as comunidades do entorno, com os membros dos conselhos e com os moradores e usuários das unidades – passaram a ter que incorporar os processos participativos em suas atividades. É interessante notar que, apesar de reconhecer a participação como algo desejável e com potencial de tornar a gestão das áreas protegidas mais eficiente, vários dos órgãos gestores de unidades de conservação temem uma verdadeira participação, nos moldes da auto-mobilização descrita acima. A participação seria desejável apenas dentro de certos limites controláveis. De qualquer maneira, muitos métodos e enfoques participativos têm sido desenvolvidos, a ponto de ter se tornado difícil imaginar a conservação de áreas protegidas sem o envolvimento dos atores locais.
Apesar do grande potencial da participação, há muitas dificuldades: as diferenças culturais e de perspectiva entre conservacionistas e comunidades locais são grandes, e a acomodação das distintas prioridades dos diversos atores com a política local e a realidade econômica é trabalhosa. O respeito às estruturas sociais locais pode, em alguns casos, ser desafiado por processos de tomada de decisão nas comunidades que marginalizam mulheres, jovens ou determinados grupos, tornando o cenário ainda mais complexo. Ainda assim, a construção de uma participação efetiva e o respeito à cultura das comunidades locais pode trazer benefícios para a conservação e para essas comunidades.
No Brasil, como em outros lugares, há casos interessantes, como o processo participativo de elaboração do plano de manejo do Parque Nacional do Jaú. Nesse processo, os moradores do parque mapearam o que representavam seu uso dos recursos, e o zoneamento da unidade foi feito com base nesses mapas. Apesar de representar um grande avanço, o grau de participação das comunidades no processo de tomada de decisão ainda foi incipiente. O passo seguinte foi a Fundação Vitória Amazônica, que vem trabalhando nessa área desde 1991, sendo responsável pelo seu plano de manejo, investir na capacitação dos moradores do parque para o processo de tomada de decisão relativo ao termo de compromisso que esses devem assinar com o órgão gestor do Parque para regularizar sua permanência até que haja condições para o reassentamento. Um desdobramento desse processo foi a criação de outra unidade de conservação, encostada no limite norte do Parque, a Reserva Extrativista do Rio Unini, que abre uma nova possibilidade para os moradores do Parque Nacional do Jaú e para o trabalho de gestão compartilhada e comunitária da biodioversidade ali presente.
O grande desafio não se resume apenas a implantar projetos que integrem áreas protegidas e populações locais, mas, sim, em lograr o engajamento de indivíduos e organizações que possam criar a atmosfera social, econômica, legal e institucional que assegurem a proteção da biodiversidade. A Convenção sobre Diversidade Biológica, ao se erguer sobre os pilares da conservação da biodiversidade, de seu uso e da repartição dos benefícios oriundos de sua utilização, consolidou a concepção de que somente a integração entre o engajamento e a participação das comunidades locais e as estratégias científicas de conservação poderá assegurar o futuro da biodiversidade.
Referências
- TERBORGH, J., C. VAN SCHAIK, L. DAVENPORT & M. Rao. 2002. "Making parks work". Eds. Island Press, Washington, D.C.
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